segunda-feira, 28 de agosto de 2006

O que realmente precisamos é debater essa questão e exclarecer ou defender cada ponto de vista, sem radicalismos, sem maquieismos, sem conceitos pré-estabelecidos.
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http://contemporanea.nominimo.com.br/ - Link da Matéria da Carla Rodrigues
A favor das cotas raciais

A historiadora Wania Sant’Anna é uma experiente pesquisadora de relações raciais. Autora de vários trabalhos sobre o tema, como o “Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil: Alerta para a elaboração de políticas públicas”, ela tem argumentos sólidos na veemente defesa que faz das cotas raciais. Num debate em que ambos os lados têm sido radicais, abrir espaço para opiniões contraditórias é a melhor forma de esclarecer o leitor e fornecer o máximo de subsídios possível para uma tomada de decisão. Foi com esse objetivo que Contemporâneafoi ouvir as opiniões de Wania. Nessa entrevista, ela lembra as diversas leis que impediram a igualdade jurídica entre negros e brancos e discorda da hipótese de que as cotas possam vir a criar ódio racial ou desmereçam os esforços de ascensão da população negra: “Estamos ascendendo por nossos próprios méritos, inclusive os de organização política.”

Qual é a importância da distinção entre discriminação racial e racismo, considerando que discriminação racial seria caracterizada por mecanismos jurídicos que impedissem os negros de ter acesso a universidade?

Sim, é verdade que existem distinções conceituais e práticas entre preconceito, discriminação racial e racismo, mas no caso das universidades, ou em todas as situações nas quais podemos perceber um perfil segregado de participação o que está em operação é o conjunto das práticas discriminatórias. Ou seja, o preconceito, a discriminação racial e o racismo. Quando as situações e realidades não refletem equidade de participação, quando a diversidade do perfil humano – especialmente o étnico/racial e o de gênero – não se apresenta como uma experiência, temos aí um exemplo, um exercício da cultura de exclusão e de delimitação de espaço.
No debate atual insiste-se em dizer que o Brasil nunca teve legislações racistas, especialmente após a proclamação da República. Isso não é verdade. Decreto 528, de 28 de junho de 1890, proibia o ingresso de imigrantes de origem africana e asiática sem autorização do Congresso. Em 1921 o Itamaraty emitia ordens explícitas às embaixadas brasileiras nos Estados Unidos para que essas negassem visto aos afro-americanos que pretendessem compra terras no Mato Grosso. Decreto-Lei 7.967, de 18 de setembro de 1945, Governo Vargas, também sobre política imigratória menciona: “todo o estrangeiro poderá entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por esta lei” e que “atender-se-á, na admissão dos imigrantes, a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. Mais claro e direto, é impossível. Tudo isso sob o regime republicano.

A falta de acesso estaria ligada à pobreza e à má qualidade da educação, o que é igual para negros e brancos pobres. Por que as cotas a partir do critério de renda não resolveriam o problema?

Existe um incrível reducionismo ao associar o caráter segredado de ingresso alunos ao ensino superior à pobreza, ou seja, ao rendimento da população. Parece óbvio, com as experiências em curso, que o padrão educacional, no seu conjunto, precisa ser revisto – e essa é uma decisão a ser tomada para o ensino público e privado. É uma inverdade imaginar que apenas as escolas públicas estão claudicantes, as escolas privadas padecem de mal semelhante. Melhorar a qualidade da educação no Brasil é um ato imperativo e isso não deve estar associado a fatores relacionados à renda, mas ao projeto de país que se quer ter, ou não, no século XXI. Contrapor uma decisão a outra é não querer enfrentar o debate sobre a desigualdade étnico/racial no Brasil. Quem é a favor da cotas raciais não é contra as cotas, ditas, sociais. Mas estão convencidos que essas não são suficientes para atacar discriminações históricas experimentadas pela população afro-descendente.

Você acredita que as cotas acirrariam o ódio racial e a discriminação? Não teme pela reação dos brancos pobres que permanecerão excluídos?

Primeiro é importante registrar que não são as organizações do movimento negro e seus ativistas quem mencionam a idéia de que, no futuro, enfrentaríamos algo como ódio racial. Segundo, qual tipo discriminação nós iríamos enfrentar? Por que pessoas, especialmente afro-descendentes, com maior nível de escolaridade e acesso a empregos resultaria em ódio racial? Políticas de ação afirmativa para pessoas afro-descendentes visam, insisto, em corrigir negações e distorções históricas.
Quanto aos brancos pobres é impressionante, há uma década atrás ninguém mencionava a sua existência. Os pobres não tinham cor alguma, eles eram apenas pobres. Então, olhemos a situação sob o seguinte prisma, com o acesso mais eqüitativo da população afro-descendente a bens e serviços, haverá mais dinamismo econômico – estamos falando de algo como 48% da população brasileira – e isso seria suficiente para acomodar as necessidades sociais e econômicas da população branca – pobre e não tão pobre. Aliás, sejamos justos, isso já está acontecendo na prática. Vejamos o exemplo do Pro-Uni, não fosse a movimentação das organizações negras, não teríamos um programa com essas características. Isso é um fato.

Um dos argumentos muito utilizados contra as cotas é que os negros devem ascender pelos seus próprios méritos e que as cotas os desqualificariam. Você discorda? Por que?

Estamos ascendendo por nossos próprios méritos, inclusive os de organização política. Fomos capazes de colocar a inclusão social e econômica da população afro-descendente como assunto nacional por nossos próprios méritos e contra todas as tentativas de reduzir esse debate a uma questão de classe. Luta por direitos e satisfação desses direitos não desqualifica nenhum grupo social, ao contrário. Os portadores de necessidade especiais, tendo garantido os seus direitos ao trabalho e à educação, por exemplo, não se desqualificam por ter acesso a esses direitos. Ter apreço por sua história, reconhecer que a escravidão é uma mácula da sociedade moderna e que precisamos corrigir o martírio experimentado por nossos ancestrais deve deixar a todos – afro-descendentes e brancos – orgulhosos de sua generosidade em dar uma solução sustentável ao país.
Finalmente, importa registrar que o debate sobre acesso às universidades só se tornou possível graças à ação voluntária de jovens afro-descendentes e brancos das periferias do Rio de Janeiro que tiveram a coragem de criar, gerenciar e fazer factível o seu ingresso nas universidades públicas e privadas. A experiência dos pré-vestibulares para negros e carentes estão na origem das propostas atuais de acesso às universidades e isso há mais de uma década. Foram eles os grandes responsáveis pela legislação estadual que fizeram da UERJ a primeira universidade do país a ter cotas raciais e sociais. Portanto, esses jovens apostaram que a solução, para eles, não estava apenas, nas atividades musicais e esportivas. Eles compreenderam que essas atividades não criam, desculpe-me a franqueza, em médio prazo, ciência, tecnologia e competitividade. Ou seja, não atende às suas necessidades e às necessidades urgentes do país. E acredito que aí está a originalidade e generosidade das propostas apresentadas pelas organizações do movimento negro. Estamos interessados no progresso da Nação e não na manutenção de privilégios.

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