segunda-feira, 28 de novembro de 2005








Li o belissimo artigo apresentado no Café Filosofico da UFRN por Monalisa Carrilho de Macedo. “o corpo em êxtase”.

E tentei fazer um mix de tudo que li e suas referencias:


Estava pensando em como iria começar esse artigo, até porque um tema tratado tão sucintamente pelo maior meio de comunicação de nosso país, não seria de fácil compreensão pra quaisquer mortal... então recorri a um êxtase filosófico tão bem descrito por Giordano Bruno em seus Furores Heróicos.

O êxtase está fora de qualquer possibilidade de sistematização, de delimitação racional. Ele obriga a um deslocamento, à dilatação, e nos põe cara a cara com a loucura. Não é, certamente, à toa que o deus do êxtase, também seja o deus da loucura. Dioniso enlouquece, embriaga e faz gozar.

Alguns autores pretendem que ele esteja na origem da humanidade pré-lógica, pré-racional, pré-filosófica. No início, dizem eles, havia Dioniso, a festa, a pura ação e o êxtase.

Os êxtases que provoca jorram do mais íntimo fluxo do ser vivo. Mas onde essas profundezas são remexidas, junto com a alegria e o nascimento surgem o horror e a destruição.

É porque alguém passou de ator a espectador do mundo que a catharsis tornou-se necessária.

O Dioniso primitivo não trazia consigo o sentido da purificação. A noção de catharsis só se formou, segundo no mundo pitagórico, tendo sido retomada depois por Empédocles. A catarse não tinha lugar no mundo dionisíaco porque ela implica numa consciência: consciência de um erro que só pode acontecer a posteriori. Nesse sentido podemos dizer que Dioniso se situa num tempo de antes do pecado original Podemos nos perguntar o que provocou esse distanciamento, ou esse despertar. A angústia causada pela visão do espetáculo terrestre das contradições, da vida e da morte, levará o homem à idéia de erro e, em seguida, de purificação. Início da theoria (visão)[2], da razão, nostalgia do gozo absoluto. Início também do rito, e da catharsis.

O êxtase, o gozo da proximidade do deus sendo finitos – porque o êxtase não pode se prolongar por muito tempo – o homem se espanta e tentará, por um lado, reproduzi-lo, e por outro, compreender por que ele não tem mais esse presente divino: início da culpa[3].

Então, depois desse êxtase originário, Dioniso continua a nos incitar à volta, ao retorno ao puro gozo e à loucura sem mistura. Deus portador da loucura, deus louco e deus enlouquecedor. E uma de suas táticas é o vinho. Chegamos ao longo e belo capítulo da embriaguez dos Gregos. O sentido do simposion – de onde herdamos simpósio – era uma reunião para se beber e conversar. A embriaguez era a culminância. E talvez Platão tenha feito os convidados de seu Banquete concordarem, excepcionalmente, em ficar lúcidos – mesmo assim sob pretexto da ressaca da noite anterior – para que a chegada de Alcibíades, totalmente bêbado, fosse bem contrastada, e com ele, o discurso mais deslumbrante de todo o Banquete.

A Musa, ao aproximar-se do poeta, o atrai para si e, como um imã, ele participa da natureza da divindade. Efeito de contágio. Criar aqui não significa, portanto dominar uma arte, mas deixar-se penetrar pela potência divina.

Resta o problema de saber quem pode ser poeta. Há, em cada um de nós, lugar para ter um deus em si. Isso não depende de uma ascese que conduziria à elevação da alma até Deus como é o caso no neoplatonismo e em toda a mística cristã.

Ora, é assim também que a Musa provoca a presença da divindade em alguns homens, e que, através desses seres em quem habita um deus, suspende-se até ela uma fila de pessoas que a Divindade habitou.

Trata-se de contágio, do efeito de forte emoção que a poesia provoca. Platão insiste na ausência de técnica que seria até uma condição do verdadeiro artista:

É coisa leve, um poeta, coisa alada, sagrada; ele só fica em estado de criar quando inspirado por um deus (entheos), fora de si (ekphron), e tendo perdido a razão – juízo - (noûs); enquanto preserva a razão nenhum ser humano é capaz de fazer obra poética nem de cantar oráculos.

A experiência do êxtase nos místicos cristãos é o rapto da alma, arroubamento, estado de beatitude que alcançam aqueles que buscam incansavelmente a união divina com deus. A Idade Média conheceu bem esses êxtases místico, mas como no século XVI parece mesmo que tudo se amplifica, é dele que nos vem o maior exemplo de êxtase místico na pessoa de Teresa d’Ávila. A leitura de sua Vida, escrita por ela mesma, deixa perplexo o leitor moderno e leigo. Esse temperamento fogoso, que sonhava ser mártir e heroína desde a infância, encontrará em Deus o parceiro ideal para esses estonteantes encontros cuja cena será de certa maneira – mas não de maneira certa – o corpo.

O êxtase, chegando de imprevisto, manifesta a presença dessa Força, Fúria grega à qual é preciso dar sentido já que é impossível dominar. O sentido cristão é a vontade de Deus, essa louca vontade de caminhos tortuosos e obscuros que nos obriga a uma entrega total. A experiência do êxtase é rigorosamente a mesma, segundo a descrição daqueles que tentam comunicá-la, e independe da época ou do lugar. O que muda é o sentido que lhe é dado, a etiologia e a profilaxia...

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O Êxtase
John Donne
(1572 –1631)

Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém - pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento - a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavra),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase - dizemos - nos dá nexo
E nos mostra do amor o objectivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distração as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Sendo nós, Inteligências,
E eles, as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratos
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.

A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Porque se os mistérios do amor, a alma os sente,
É ao corpo que pertencem todas as linhas que lemos.

Se alguém - amante como nós - tiver
Esse diálogo de um, ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.



Tradução de Augusto de Campos


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